quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

UM NATAL MARCADO PELA TRISTEZA


                                    
            Por Nilson Montoril
A morte do Padre Júlio foi precedida de momentos de muita angústia por parte dos que tentavam socorrê-lo. Por volta das 15 horas, do dia 24 de dezembro, o automóvel descia a serra quando o motorista o manobrou excessivamente para a direita a fim de desviar a viatura de uns tocos. Ela saiu da estrada e só não rolou até o fundo de um abismo porque uma possante árvore impediu. As rodas ficaram para cima e os ocupantes do veiculo de cabeça para baixo. As freiras que o acompanhavam  e o motorista foram socorridos, mas o sacerdote ficou comprimido entre o encosto da bancada da frente e uma raiz de árvore, que sustinha o carro sobre o abismo. O peito de encontro à raiz e o encosto impedindo que seus pulmões inflassem.Padre Júlio ficou assim por 40 minutos, com dificuldade para respirar.Morreu asfixiado, sereno e rezando. Tinha 66 anos de idade.
A noite do dia 24 de dezembro de 1944, começava a dominar a pequena Macapá, quando o Posto Telegráfico recebeu uma mensagem passada de Vargem Grande, Minas Gerais, dando conta de que o Padre Júlio Maria Lambaerd havia falecido em circunstâncias trágicas. Imediatamente, com a comunicação impressa em telegrama, o estafeta foi à Casa Paroquial entregá-lo aos Padres Felipe Blanke e Antônio Schulte, religiosos que, a exemplo do Padre Júlio, integravam a Congregação da Sagrada Família, estabelecida em Macapá desde o ano de 1911. Os sinos do campanário da Igreja São José passaram a executar o toque fúnebre de maneira intermitente, atraindo a população para frente do templo. Procurando conter a emoção, o Padre Felipe Blanke, vigário da Paróquia de Macapá, repassou a todos a notícia que havia recebido.
Fotografia do Padre Júlio ao tempo em que viveu em Macapá(1913 A 1923). Nesta época ele estava com 35 anos de idade. Sofreu com a malária, com uma ferida que quase provoca a amputação de sua perna direita e com a febre provocada por uma mosca peçonhenta na Serra do Tumuc-Humac.
Há 22 anos o Padre Júlio tinha deixado Macapá fugindo da malária que o fustigava. Depois de atuar algum tempo na Vila Pinheiro (Icoaraci), no Pará, foi fixar-se em Manhumirim, no Estado de Minas Gerais. A população ainda tinha viva na memória a figura do Padre Júlio, um homem decidido que tantos benefícios trouxe para a então abandonada cidade paraense de Macapá e tinha por ele uma grande amizade. Júlio Emilio Lombaerd nasceu na Bélgica, no dia 7 de janeiro de 1878. Aos 17 anos, a 1º de novembro de 1895, em Maison Carré, África, recebeu o hábito sacerdotal. Sua consagração ocorreu a 18 de abril de 1897, aos 19 anos de idade. A recepção diaconal verificou-se a 6 de outubro e a ordenação sacerdotal a 13 de junho de 1908. Por devoção a Virgem Maria alterou seu nome para Júlio Maria Lombaerd. Em setembro deste ano despediu-se dos familiares e embarcou para o Brasil, com destino a pobre e diminuta cidade paraense de Macapá. 
Casa Paroquial que permaneceu em uso até o momento em que foi erguido o primeiro prédio da Prelazia de Macapá.No ambiente que se tinha acesso através da 4ª porta, à direita, estudei catecismo com o Irmão Francisco Mazzolene. A casa era de taipa de mão e assoalho de madeira.

No dia 15 de outubro de 1908, o navio que transportava o Padre Júlio chegou a Pernambuco. Ele passaria quase 5 anos trabalhando em Recife, Natal e Belém.Chegou a Macapá no dia 27 de fevereiro de 1913, sendo recebido na Doca da Fortaleza pelos sacramentinos José Lauth (vigário de Macapá desde 1911) e Hermano Elsing, vigário de Mazagão, dois velhos amigos dos tempos de seminário. Em pouco período de tempo percorreu toda a região do atual Estado do Amapá e quase morreu ao ser picado por uma mosca peçonhenta na serra do Tumuc-Humac. A 2 de maio de 1913, foi nomeado pelo governador do Estado do Pará, Enéas Martins, para o cargo de  Diretor das Escolas Reunidas de Macapá, fato que fez melhor consideravelmente o desempenho das mesmas, Padre Julio era empreendedor nato e fundou várias instituições benfazejas em Macapá: Congregação das Filhas do Coração Imaculado de Maria, Colégio e Orfanato Santa Maria, Cine Olímpia, Filarmônica São José e a Farmácia Comunitária. 
Cópia de foto tirada em 1916, que se encontra no livro "Padre Júlio, Sua Vida e Sua Missão". Mostra a casa que abrigou as freiras da Congregação das Filhas do Sagrado Coração Imaculado de Maria, em Macapá. A sede da congregação era o prédio na esquina da Rua São José com a atual Avenida Presidente Vargas. Depois que as freiras deixaram a cidade o imóvel abrigou a "Casa Popular" de Manoel Eudoxio Pereira, o Pitaica, o Escritório de Contabilidade de João Wilson Carvalho e parte da Divisão de Segurança e Guarda, na fase Território do Amapá As duas mangueiras frondososa no primeiro plano foram retiradas em 1970, na gestão do Governador do Território do Amapá,  Ivanhoé Gonçalves Martins.

Na Ilha de Santana instalou a casa destinada ao retiro dos religiosos da Congregação da Sagrada Família. A partir de 1948, sob a gestão dos padres italianos do Pontifício Instituto das Missões Estrangeira, esta propriedade funcionou como pensionato e seminário. No atual bairro Buritizal, o saudoso sacerdote belga criou a Fazenda Santa Maria, em cujas terras se fez a instalação do atual Cemitério São José. Na fazenda ficavam os animais que os criadores de Macapá doavam ao santo padroeiro da cidade, que ali permaneciam até o dia do leilão a 19 de março. 
O sacerdote que monta o cavalo escuro é o Padre Júlio. O outro religioso é o Padre Hermano Elsing, vigário da Paróquia de Nossa Senhora da Assunção, na atual Mazagão Velho. A fotografia foi batida na Fazenda "Santa Maria" que ocupava terras do hoje bairro Buritizal. Há mais dois homens montados a cavalo. Eram os vaqueiros da fazenda.

Antes da chegada dos padres sacramentinos, era o Padre François Rellier, francês com atividades na Guiana Francesa que prestava assistência espiritual aos macapaenses. O povo quase não ia à igreja e uma considerável parcela dele se devotava ao espiritismo africano e usava santos para angariar dinheiro em proveito próprio. O Padre Júlio reduziu drasticamente esta prática e por isto ganhou a antipatia dos espertalhões. A comunidade negra deve a ele a organização da festa das coroas que ainda hoje simbolizam o Divino Espírito Santo e a Santíssima Trindade nas duas quadras do Marabaixo. Porém, em 1923, o Padre Júlio precisou deixar Macapá para livrar-se da malária. Levou consigo as religiosas da Congregação das Filhas do Coração Imaculado de Maria e todo o acervo das instituições que criara.
Padre Júlio e quatro irmãs da Congregação das Filhas do Imaculado Coração de Maria que foram transferidas de Macapá para a Vila Pinheiro, hoje Icoaraci, no Pará. Na Vila Pinheiro o Padre Júlio construiu o Colégio Nossa Senhora de Lourdes.Ele ficou em Pinheiro até 1926.
Fixou suas atividades na então Vila Pinheiro (Icoaraci), no Estado do Pará, onde as freiras residiram até transferirem suas ações para Caucaia, no Ceará, onde ainda existe a Congregação. Padre Júlio não tardou a arribar com passagem por Alecrim, no Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro. Em busca de um clima mais ameno o ilustre vigário escolheu Manhumirim para reiniciar sua brilhante trajetória religiosa. Construiu o Hospital São Vicente de Paulo, o Seminário Apostólico, o Jornal “O Lutador” e outros empreendimentos. Em Dores de Indaiá, cidade mineira erigiu o Seminário São Rafael.
1934 - Padre Júlio Maria de Lombarde, seus religiosos e seminaristas na cidade mineiro de Mnhumirim.

Em 1931, vigorando no Brasil o governo ditatorial de Getúlio Vargas, Padre Júlio foi acusado de ser integralista, nazista e rebelde às autoridades brasileiras. Respondeu com muito altruísmo ao processo que lhe foi movido, sendo declarado inocente a 31 de outubro de 1931. Somente depois da decisão judicial ele recebeu o titulo de cidadão brasileiro e passou a usar o nome  Júlio Maria de Lombarde. Nos dias atuais, a Fundação Padre Júlio atua em diversas partes do Brasil.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

FRANCISCA LUZIA DA SILVA, A MÃE LUZIA

                     
             Por Nilson Montoril
                       
           
A gravura acima não é cópia de uma fotografia, mas de pintura feita pelo artista plástico R. Peixe. Consta que ele pintou o quadro baseado numa fotografia de "Tia Milica", nas descrições feitas pelos parentes e na poesia "Mãe Luzia" composta pelo poeta Álvaro da Cunha.

             Francisca Luzia da Silva tinha suas raízes em Mazagão Velho, onde nasceu a 9 de fevereiro de 1869. Nunca foi escrava e deve descender dos cidadãos que viviam no castelo de Mazagão, no Marrocos e que Portugal fez migrar para a Amazônia. Tinha 15 anos de idade quando seus pais mudaram-se para Macapá, em 1884. Foi casada com Francisco Lino da Silva, próspero lavrador e político macapaense que chegou a exercer o cargo de Prefeito de Segurança (Delegado de Polícia) e obter a patente de capitão da Guarda Nacional. O casal teve duas filhas e quatro filhos: Miquilina Epifânia da Silva (Milica), Cláudio Lino dos Passos da Silva (pai do Francisco Lino da Silva, o Lino da Universidade de Samba Boêmios do Laguinho), Àguida Chavier da Silva, Francisco Lino da Silva, Raimundo Lino da Silva (Bucú) e José Lino da Silva. A família tinha duas propriedades produtivas. O sitio “Capitão”, localizado na margem direita do Rio Anauerapucu (Vila Nova), cujo titulo homenageava a patente do marido e o “Retiro Matapi”, na Campina Grande, onde a família criava gado, porcos e aves. Era no sitio Capitão onde Francisca Luzia da Silva e Francisco Lino da Silva residiam no período de janeiro a julho aproveitando á época chuvas intensas. No sitio a família colhia frutas e plantava diversos produtos. No verão ocorria a coletava do leite de seringueira e de sementes oleaginosas como andiroba, murumuru, ucuuba e pracaxi. O Retiro Matapi, localizado na margem esquerda do Rio Matapi, foi vendido ao senhor Francisco Torquato de Araújo, seu conterrâneo de Mazagão e hoje pertence à família Rocha. Devidamente autorizada pelos intendentes de Macapá, mãe Luzia possuiu roças de tabaco e mandioca na área adjacente ao Poço do Mato, então importante manancial de água potável da qual se servia a população de Macapá.

O Largo dos Inocentes aparece bem descarecterizado nesta fotografia. Na época em que Mãe Luzia viveu, não havia a passarela de cimento delimitando o estacionamento para veiculos. O prédio do Pensonato São José também não existia quando ela morreu, em 1957. Das duas mangueiras plantadas no local, só observamos uma, que já não era original, mas transplantada do lado do Teatro das Bacabeiras. A outra mangueira tinha sido cortada. Na casa branca, à direita e ao lado do prédio de dois pavimentos,morou Miquilina Epifânia da Silva, a Tia Milica, filha de Mãe Luzia e bem parecida com ela.

                  Mãe Luzia, como ela era chamada Francisca Luzia da Silva, também se devotou aos desvalidos, ministrando-lhes remédios caseiros, benzendo crianças, curando espinhela caída, cobreiro, carne rasgada, erisipela e problemas da cabeça. Nasceu com o divino dom de “aparar” crianças e nenhuma delas pereceu em suas mãos. Foi contemporânea da Vó Guardiana, a quem auxiliava na condução dos partos. Quando Vó Guardiana morreu, Mãe Luzia ficou atendendo sua clientela. A primeira casa de Mãe Luzia era localizada na esquina da Rua dos Inocentes (depois Coronel José Serafim Gomes Coelho) com a Travessa Floriano Peixoto (depois Presidente Getúlio Vargas). Ela deixou o imóvel sob a responsabilidade do filho Cláudio Lino e foi se estabelecer no Largo dos Inocentes. A segunda casa tinha estrutura em taipa de mão, com vários quartos que ela alugava para caixeiros viajantes e romeiros. Era um casarão de telhado alto situado na esquina da Avenida Mendonça Furtado com a Travessa Francisco Caldeira Castelo Branco (depois Coronel José Serafim Gomes Coelho e atualmente Tiradentes), com frente para o Largo dos Inocentes, também denominado Formigueiro.
Observe a casa localizada ao fundo da passagem entre a velha sede do Senado da Câmara e a Igreja de São José. Ela demorava  a margem da Travessa Castelo Branco, de frente para o Largo dos Inocentes e pertinho da casa da Mãe Luzia. A foto é bem antiga, mostrando como era a Igreja. O espaço da Praça Veiga Cabral justificava muito bem a denominação de Largo da Matriz.

                   Mesmo quando o médico obstetra e cirurgião Cláudio Pastor Darcier Lobato veio para Macapá,em 1944, e passou a chefiar a Unidade Mista de Saúde (que ocupava a área onde foi construída a Biblioteca Pública), Mãe Luzia não foi relegada. Em várias oportunidades o ilustre médico recorreu aos conhecimentos práticos da Mãe Preta da Cidade de Macapá. O Mesmo fez o médico Moisés Salomão Levy, que era pediatra. Sem a posse de suas antigas propriedades rurais, Mãe Luzia precisou lavar e engomar roupas brancas de linho, coisa que ela fazia com perfeição. Sua clientela incluía o Governador Janary Nunes, o Promotor Público Hildemar Maia, o Juiz de Direito José de Ribamar Hall de Moura e muitos outros cidadãos ilustres de Macapá que, nas solenidades mais expressivas, usavam ternos brancos. Por ocasião da festa alusiva a São José, até os macapaenses mais humildes recorriam aos serviços de Mãe Luzia. Quase todo mundo usava roupa branca. Algumas pessoas fantasiosas insistem em dizer que Mãe Luzia foi escrava e por causa disto tinha marcas de chicotadas nas costas. Pura fantasia. Ela costumava lavar roupas sem usar a parte superior de sua vestimenta e quem a via assim jamais lhe faltou com respeito. O quintal de sua residência era paralelo a Rua Tiradentes e não tinha cerca. Quando se debruçada sobre a gamela, esfregando as roupas, seus seios flácidos se misturavam a elas. Eu conhecia muito bem a casa da Mãe Luzia. Volta e meia estava por lá na companhia do amigo Raimundo Nonato da Silva, o “Bigode”, seu neto. Aliás, Mãe Luzia teve um filho com o mesmo nome, cujo apelido era “Bucú”. O filho José Lino da Silva foi vitima fatal de um disparo acidental de revólver pertencente a um caixeiro viajante que, inadvertidamente, o pobre rapaz tirara do quarto do hóspede de sua genitora e à noite mostrava a alguns amigos no canto da Igreja de São José.Um jovem ligado a família pediu para ver a arma e julgando que ela estivesse sem munição apontou-a para o José e puxou o gatilho. Mãe Luzia sofreu muito com a morte do filho. A porta de entrada dava num longo corredor que se estendia até a porta do quintal. Os quartos e a cozinha ficavam do lado direito de quem entrava no imóvel. Pelo menos dois quartos da frente eram alugados a terceiros.  Quando íamos apanhar grumixama (também chamada ameixa, jamelão e azeitona de cabrito) ela gritava: “ Pêra aí, seus cornos, vocês já vão manchar de nódoa as minhas roupas do quaradouro?”. Faleceu dia 23 de setembro de 1957, com 88 anos de idade. Estava alquebrada e tinha os cabelos brancos como um nicho de algodão. Sua morte deixou os moradores de Macapá imersos em profunda tristeza. O enterro ocorreu no Cemitério Nossa Senhora da Conceição, a direita de quem ingressa naquele campo santo, rente ao passeio que leva ao Cruzeiro e a capela. O corpo de Mãe Luzia foi inumado na mesma sepultura onde se encontrava o José Lino. A morte de Mãe Luzia encerrou o ciclo das renomadas parteiras e mulheres de múltiplos conhecimentos com plantas medicinais. Ela e Guardiana Mendes da Silva, a Vó Guardiana despontam como verdadeiros anjos benfazejos da comunidade macapaense. Vó Guardiana ou Guardina teve vida longa, alcançando 102 anos de idade. No local da primeira casa de Mãe Luzia ainda mora uma das suas neta. O imóvel que ela ocupou até morrer foi desapropriado em 1970, para o alargamento da Rua Tiradentes. Na parte do terreno que não virou leito de rua foi erguido um prédio em alvenaria onde funcionou o Cartório Jucá.         
Prédio onde funcionou o Cartório Jucá. Da esquerda para a direita vemos os senhores Ben Hur Correa Alves, (escriturário), Francisco Torquato de Araújo (Escrevente Juramentado), Cícero Silva (comerciante e vizinho do Cartório) e Jacy Barata Jucá (Tabelião Substituto). Todos conheceram Mãe Luzia e eram seus amigos. O imóvel foi construido absorvendo uma parte do que restou da sua casa. Francisco Torquato,de camisa branca, era mazaganense e conterrâneo da Mãe Preta de Macapá.